domingo, 5 de outubro de 2008

GUILHERME

Em pequeno olhava o escuro da noite e não tinha imaginação para ir além dos campos semeados ou dos chaparrais mais ou menos densos do seu pequeno mundo.
O Guilherme foi uma criança sem grandes sonhos, sem muito tempo para ser menino, a infância apanhou-o já a guardar uma vara de porcos soltos no montado. Olhava as estrelas sem ver a beleza desse universo, sem perceber a imensidão desse mar de pequenas luzes que o ajudavam a situar-se num tempo sem relógios nem pressas. A lua foi sempre uma companheira que se habituou a esperar. Sem ela a noite não se completava. Quando por vezes dormia no encosto de um sobreiro, procurava sempre a sua luz pálida que lhe sossegava a alma.
Mal ouviu falar de escola e de aprender a ler e a escrever, que não se ganhava o pão sentado numa carteira.
Mais tarde teve a sensação que Guilherme nem foi nome de criança, pelo menos por estas bandas e nestes tempos.. Dos pais não ficou com recordações de grandes afectos ou carinhos. Tal como os irmãos, não se lembra de comemorações de aniversários ou festas. Era um mundo sempre igual, sem domingos ou dias santos, que os animais não têm descanso.
Na medida que cresceu foi criando alguma importância, passou dos porcos para as ovelhas e mais tarde das ovelhas para as vacas.
Já tinha entrado na juventude quando o levaram a conhecer pela primeira vez a vila. Ficou espantado com aquilo que lhe parecia um labirinto de ruas e travessas, lojas onde se vendia um pouco de tudo, de coisas que nem imaginava.
Na feira para onde tinha trazido o gado, viam-se coisas assombrosas, muito para além do que supunha poder ser possível. Não se atreveu a ver a mulher serpente ou o homem mais forte do mundo, não se convenceu que a cigana lhe pudesse adivinhar o futuro, mas ficou boquiaberto com um homem que vendia uma pomada que curava todas as doenças conhecidas e por aparecer. Não fosse o facto de levar o dinheiro só suficiente para comprar uma navalha para a barba que a pouco e pouco lhe começava a despontar no queixo, e decerto que levaria a pomada milagrosa.
O tempo foi passando até que um dia lhe apareceu o pai com um guarda republicano. Era tempo de ir à tropa e de dizer adeus ao seu mundo por outro que não conhecia e que o deixava apavorado.
Foi assentar praça numa terra distante, para lá do Tejo, para lá dos campos semeados da sua infância.
No inicio foram tempos complicados, desenraizado, sem referências base onde se escudar, sentiu-se completamente e absolutamente abandonado à sua sorte. Mas a pouco e pouco foi-se integrando nesse mundo estranho de regras novas e sentidos diferentes, onde até o tempo tinha outro andamento.
Foram dois anos de tropa sem voltar à terra, que a viagem era longa demais para fins-de-semana ou licenças. Criou amizades e foi conhecendo melhor aquela nova terra, que ainda sem o saber viria a ser a sua.
Durante a tropa aprendeu a ler e a escrever, aprendeu a conhecer outro mundo e lá ficou. Casou e criou filhos, mas não voltou a criar raízes, que essas precisavam de outra terra, de outro sol.
Muitos anos mais tarde, já na casa dos setenta, viúvo, com os filhos a trabalhar longe e os netos que quase não via, sonhava ainda um dia poder voltar a ver os seus campos semeados onde nunca mais tinha voltado. Só por carta soube da morte dos pais, e já à alguns anos que tinha deixado de receber noticias dos irmãos. Sonhava com os porcos em varas no montado, sonhava com uma terra doutras eras, da mansidão do tempo a passar nas noites de verão, das estrelas a rodar no céu iluminado por essa lua que não lhe voltou a sossegar a alma.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

UM HOMEM SÓ

Chamava-se não importa como. Era um homem já entrado na meia idade, onde no alto do seu quase metro e oitenta começavam a aparecer os brancos que irrompiam imponentemente por entre os seus cabelos até aqui negros como carvão.
Nasceu e sempre viveu na terra a que se habituou a chamar sua. Ao longo dos anos foi assistindo às transformações do tempo nas casas, nas ruas, nas pessoas, nos hábitos e costumes, no modo de viver o dia a dia outrora calmo e agora com um ritmo de como se o mundo fosse acabar já hoje.
Era conhecido de quase toda a gente da terra e talvez por isso se sentisse tão protegido ali, no seu canto, na sombra das suas casas, vendo sempre a silhueta majestosa do castelo no alto do monte maior.
Das poucas vezes que se afastou da terra sentiu-se vazio, perdido, com uma força invisível que lhe apertava o coração e que crescia a cada dia de ausência, um sentimento de impotência, de sonhar voltar, saudade.
Esse fogo só se apagava quando ao passar no alto da Courela do Guita avistava a imagem da terra ao longe, estendida desde a encosta do castelo até aos montes dos dois santuários opostos. Era como se visse o paraíso, sentia um calor morno sossegar-lhe a alma, estava outra vez completo.
Mas a sua vida foi-se também ela transformando. Dos tempos de infância e juventude ficaram as memórias que a pouco e pouco parecem querer diluir-se na irrealidade dos anos que se perderam do sentido da própria vida.
O homem sentia-se cada vez mais só.
A solidão pode ser sentida a quase tacteada como uma densa neblina que se desenvolve e consome tudo à sua volta.
O homem sentia-se só, profundamente só. Mesmo andando no meio das outras pessoas, mesmo falando com os amigos, sentia-se só.
Essa sensação foi crescendo no seu imaginário, como se de uma praga se tratasse. Sentia a dor da desilusão avançar pelo seu corpo e já não queria lutar contra isso. Não podia desabafar porque simplesmente não sentia as pessoas. Escondia-se em pequenos nichos da sua vida passada sabendo que o tempo não pode voltar atrás, que não se pode reviver a felicidade da infância. Sentia-se só e já não se importava.
O homem sabia que não se pode viver só, sem o calor da família e dos amigos, mas também isso quase deixou de o incomodar. Foi-se entregando à sua solidão, abstraindo-se do seu próprio mundo que sentia já não resultar como realidade aceitável. Os projectos que sonhara caiam como castelos de cartas e ele já não estendia os braços para o impedir. Olhava em redor e não reconhecia a sua própria vida. Sentia-se cada vez mais só, empurrado para um túnel em que via a saída, escuro, frio, tenebrosamente silencioso. Sabia que no fim do túnel havia um poço sem água, sem fundo, sem vida. Sabia que era uma escolha sua, vaguear pelo túnel escuro ou saltar no poço sem água. Por vezes pensava que poderia atingir o fim do poço e espreitava para o seu interior. Sentia-se só. Sentia-se vazio, sem alma e sem força. Sentia o túnel cada vez mais estreito e espreitava.
Por fim sentou-se na beira do poço sem água e gritou.
Estranhamente já não ouviu o eco do seu próprio grito.

terça-feira, 8 de abril de 2008

A MENINA DOS OLHOS GRANDES

Era uma vez uma menina, nascida na terra do sol e do trigo, num Abril longínquo de outro tempo.
A menina, de olhos grandes e brilhantes, que dizem herdou de um seu padrinho, levou uma infância normal como todas as meninas e meninos do seu tempo.
Brincou e riu e viveu o seu conto de fadas até que um dia, nos seus precoces cinco anos, perdeu o seu maior tesouro. Disseram que foi por vontade de Deus e que Ele tem os seus mistérios, mas, para a menina era de todo incompreensível que fosse vontade d'Ele que ela ficasse sem a sua mãe, como que sozinha num mundo ainda por conhecer.
A vida da menina dos olhos grandes mudou, o seu conto de fadas acabou, viu-se assim muito cedo no mundo real, como se de repente o cenário da sua peça tivesse ruído e ficasse a visão nua e crua da realidade.
Seguiram-se anos e anos de muita solidão, vivendo em casas que muitas vezes não sentia suas.
O pai, que nunca o soube ser, quase desapareceu da sua vida por várias vezes. Primeiro para outra mulher, depois, para o vinho e as várias tabernas da terra. Dele nunca sentiu o carinho e a protecção afectuosa da figura paterna.
Os anos foram passando e a menina foi-se tornando jovem mulher, bela, com os seus olhos grandes à procura do mundo que sonhava para si.
A vida soube-lhe sempre ser madrasta, mas, por vezes o sonho sobrepunha-se à realidade, e em breves escapadelas de alguns dias para casa de uns tios de outras terras, sentia o calor morno de um lar. Eram dias em que vivia uma outra vida, de carinhos que perdera, de cumplicidades, de se sentir amada, de desejar não mais regressar para o inverno da sua realidade.
Nos anos de juventude teve a companhia da avó, também ela com problemas de alcoolismo.
Sempre sentiu medo. Medo da vida, medo do pai que a maltratava quando bebia, medo do que o futuro lhe destinava.
Já mulher conheceu um homem, e sem se aperceber, a pouco e pouco o seu mundo foi-se começando a transformar.
Não teve um dia de casamento normal. Mais uma vez o pai não soube responder ao momento que deveria ser de plena alegria. Foi acompanhada ao altar por um tio e finalmente disse o "sim".
Num dia de um mês de Março nasceu-lhe o filho, num outro dia de um outro Março a filha. Os seus dois sonhos. Realizações supremas de uma sua nova vida.
Mas entre os dois a sorte ainda lhe tentou fugir quando os médicos lhe diagnosticaram uma doença degenerativa nas articulações. Ela já não deixou. A pouco e pouco tinha adquirido a coragem dos heróis, e decidiu ganhar a sua vida.
Mesmo com a sua incapacidade puderam ver a sua coragem no dia a dia de se realizar como profissional, como mulher, como mãe.
Ao fim de muitos anos, nos olhos grandes da mulher, ainda se percebe alguma tristeza.
Talvez não se aperceba que para o homem e para os filhos, ela é um mundo, tão perfeito e desejado como um sonho colorido.
Talvez os filhos, como muitos filhos, não lhe digam muitas vezes como para eles é ela a mais perfeita, a mais bonita, a melhor das melhores mães do mundo.
Talvez o homem, como muitos homens, não lhe consiga transmitir toda a força do amor, carinho e amizade. Talvez o homem, como muitos homens, não lhe diga muitas vezes "amo-te".
Quando souber tudo isso, aos olhos grandes a mulher, talvez volte o brilho e a alegria que à muitos anos fugiu dos olhos grandes da menina que nasceu na terra do sol e do trigo.