terça-feira, 19 de maio de 2009

SOMBRAS DA NOITE

Foi no principio do verão que a família se mudou para a nova vida, na pequena aldeia de casas brancas, pintadas na planície dourada que esperava as colheitas.

O Manel era um moço dos seus doze anos, de cabelos pretos e pele demasiado clara para o sol desta terra. A família vinha das serras do norte para tentar a sorte nos campos planos do sul. O pai do Manel tinha arranjado emprego numa herdade próxima e com ele trouxe a mulher e o único filho.

Os primeiros dias foram para se acomodarem e conhecerem bem os cantos à casa e à nova arrumação das coisas.

Os outros moços da aldeia iam rondando a casa com a curiosidade das novas gentes e rapidamente se aperceberam da presença de um novo colega para as brincadeiras.

Num abrir e fechar de olhos o Manel já corria pelas ruas da aldeia com os recentes amigos, e logo depois começou a descobrir os campos em redor, os pegos da ribeira pequena onde saltavam as rãs e fugiam as cobras d'água, as fontes caiadas de água sempre fresca. O Xico era o mais velho e portanto o comandante do pequeno grupo de exploradores. O Joaquim e o João completavam a equipa e todos juntos tentavam aproveitar ao máximo as férias grandes em dias que pareciam não ter fim e serões mornos que serviam para esgotar a réstia de energia que sobrava das correrias e aventuras.

Assim se passaram uma semanas incríveis de felicidade para o Manel até que um dia o Xico o desafiou para uma nova aventura. Nesse serão iam todos até à ribeira aos Gambozinos. O Manel disse que nunca tinha ido aos Gambozinos mas os outros rapidamente o sossegaram dizendo que não tinha nada que saber e que o ensinavam no próprio local. Encontraram-se logo a seguir ao jantar e o Xico entregou-lhe uma saca velha que tinha trazido de casa, e no caminho para a ribeira foi explicando que para apanhar os Gambozinos o Manel que tinha menos experiência ficava com a saca enquanto eles iam à volta com paus enxotando-os direito ao sitio onde o Manel os ia apanhar. Chegados ao local escolhido, posicionaram o Manel junto a umas árvores grandes, apanharam uns paus do chão e antes de seguirem avisaram o intrigado Manel que os Gambozinos podiam vir a voar baixinho ou pelo chão, ele só tinha que os ir enfiando na saca. O Manel ainda ouviu o riso disfarçado dos outros ao afastarem-se, mas lá ficou à espera, confiante na caçada.

Passada quase uma hora e depois de já várias vezes ter chamado pelo nome dos amigos, o Manel começou a entranhar uma certa desconfiança e inquietação. Começou a ouvir os estranhos sons dos campos cada vez mais perto de si. Ouvia o restolhar das ervas secas e imaginava os estranhos animais nocturnos que por ali andavam, ouvia as folhas das azinheiras e começava a ver vultos no ar. Chamou mais uma vez pelos amigos, desta vez com o som do desespero, e tão alto foi que uma coruja que estava numa árvore próxima voou e passou mesmo á sua frente. Foi a gota que faltava para a sua jovem mente disparar. Largou a saca, gritou a plenos pulmões e desatou a correr. Na desorientação da noite correu no sentido contrário ao que pretendia e quando deu por si estava no meio de um chaparral que não se lembrava e não conseguia localizar no espaço. Estava perdido na noite. Foi andando, mas ao fim de um bocado chegou novamente à mesma pedra estranha onde se lembrava de já ter passado. Não sabia o que fazer e o medo toldava-lhe completamente o pensamento. Por todo o lado via vultos e sombras que pareciam passar de árvore em árvore e os sons pareciam martelos no interior da sua cabeça. O medo transformou-se rapidamente em pânico e de repente deixou de se lembrar.

Na aldeia já toda a gente procurava pelo Manel, e depois dos amigos terem confessado a brincadeira, as buscas alargaram-se aos campos próximos, à ribeira, aos montados. Os homens gritavam na noite o seu nome sem sucesso. Foi já ao raiar da aurora que deram com ele, encolhido entre a estranha pedra e a um sobreiro, ensopado numa poça do seu próprio mijo. Não conseguia emitir um único som e de olhos esbugalhados não parecia reconhecer ninguém.

Seguiram-se dias de desespero para os pais do Manel, depois de uma febre persistente baixar finalmente, foram consultas em vários médicos, dias perdidos em viagens a hospitais, a especialistas diversos, sem grandes resultados visíveis, ele continuava alheado de tudo, sem falar, sem querer.

Passadas semanas de incertezas no futuro, os pais finalmente começaram a aceitar que algo se tinha desligado na sua cabeça e a conselho dos médicos, esperaram pacientemente por algum sinal de recuperação, de melhoras.

A escola começou e o Manel ficou-se por casa, absorto num mundo cada vez mais seu, sem interferências, sem sinal de qualquer contacto com o exterior. Sentavam-no às vezes num banco à porta de casa mas não conseguiam qualquer reacção da sua parte. Mesmo quando os antigos amigos passavam por lá, era como se estivesse só.

Com o passar dos anos a vida do Manel não mudou, continuou a viver para dentro de si próprio, como se mundo exterior não lhe interessa-se e nem mesmo os pais se voltaram a ouvir a voz.

As crianças mais novas ao passarem pela sua casa e ao vê-lo sozinho sentado no seu banco, riam-se e começaram a chamar-lhe o "Manel da Noite". O nome foi ficando e o Manel agora já na casa dos 30, continuava a sentar-se todos os dias à porta de casa, parecendo não ver nada em seu redor. O pai morreu cedo, quem sabe consumido pelo desespero continuado da sua impotência para ajudar o filho. A doença começou a consumi-lo e rapidamente se apagou sem que isso viesse trazer alguma alteração ao mundo solitário do filho. Mas, alguns dias depois do funeral do pai, o Manel começou a ter outra atitude. Começou a sair sozinho do banco da porta de casa e a deambular pelas ruas da aldeia. Depois começou a alargar as voltas até aos campos próximos e à ribeira. Começou a ser um hábito ver o Manel a qualquer hora do dia a caminhar pelas ruas ou pelos caminhos da terra, sem nunca dizer uma palavra a ninguém, mesmo quando as crianças gritavam "olha o Manel da Noite" ele seguia o seu caminho como se não ouvisse qualquer som senão o que ia na sua cabeça.

Certo dia a mãe estranhou o facto do Manel andar atarefado de volta de algumas coisas que havia no quintal da casa e estranhou a sua saída com uma saca velha com qualquer coisa dentro.

Com o cair da noite a mãe alarmada deu o alarme de que o Manel não voltara para casa e sabendo o medo que ele tinha do escuro da noite, tinha a certeza de que algo tinha acontecido.

Os homens da aldeia começaram de imediato a busca, percorreram os caminhos e viram as margens da ribeira sem resultado. Aos primeiros raios do novo dia deram com ele. A saca caída junto de uma estranha pedra e o seu corpo balançando sob a pernada do sobreiro que anos antes o tinha acolhido das sombras, sons e vultos da noite. Tinha na cara um ar de serenidade de quem tinha finalmente encontrado a paz de espírito que lhe tinha fugido à tantos anos atrás. Já não tinha medo da noite.

Sem comentários: